sexta-feira, 25 de março de 2011

Agora, Inês é morta

Eu sei que, pra variar, tá um texto muito grande, mas eu garanto que vale a pena. Eu tô quase é começando a escrever um livro truly, se continuar assim...

Não sei se já contei isso aqui; acho que não. É história antiga, tão antiga que eu nem era nascido, ou era novo demais pra me lembrar dos meus early years.

Eu tenho irmãos gêmeos. Não gêmeo meu, mas somos quatro filhos, conforme eu já contei aqui: o Paulo*, mais velho; o Diogo* e o Gabriel*, que são os gêmeos; e eu, caçula. Quando Paulo tinha dois anos, os gêmeos nasceram. Prematuros (acho que foi de sete meses), por causa da pré-eclâmpsia. É, cês sabem: gravidez de gêmeos, o risco de hipertensão é maior, e tal. Por isso, o médico antecipou a cesariana.
Diz minha mãe que sentiu as mãos e os pés formigando durante o parto. As enfermeiras conversaram com ela, perguntando se estava tudo bem. Mas ela não disse estar sentindo nada de diferente, à exceção dos pés e mãos formigando. Diogo nasceu com menos de dois quilos; Gabriel, um pouco mais que isso.
No outro dia, ela foi à maternidade.
- O QUE A SENHORA ESTÁ FAZENDO AQUI?! - disse o médico que fez o parto, ao ver minha mãe com a cara colada no vidro.
- Uai, só vim ver os meninos...
- A senhora teve um ataque cardíaco no parto, não te falaram isso? E a senhora subiu todas essas escadas! Volte já pra casa! - e então, o médico pediu às enfermeiras que trouxessem uma cadeira de rodas.
Sim, agora faz sentido. As enfermeiras conversavam o tempo todo com ela durante o parto, perguntando sobre o que ela sentia, para que ela mantivesse a consciência, apesar da anestesia e do ataque cardíaco.
E assim, na outra consulta, o médico sugeriu que os dois bebês prematuros ficassem sob observação constante de enfermeiras, que cuidariam exclusivamente deles, já que foi uma gravidez e um parto complicados. Fazer o quê, meus pais contrataram três, por um período de 8 h cada uma, diariamente, até que eles pudessem sair da maternidade.
Gastaram uma fortuna. Meu pai teve que vender o carro, a filmadora (meu pai já foi cinegrafista, desses de casamentos, e tal). A situação financeira dos meus pais à época já não era lá muito boa - ele era sócio do irmão dele, que era muito pão-duro pra investir na loja, e ficavam estagnados, sujeitos à inflação e possível consequente falência da empresa. Ficaram mais de quinze anos sem falar um com o outro, por causa de uma briga decorrente dessa sociedade, que ocorreu alguns anos mais tarde.
Mas isso é outra história.
Enfim, voltando. Ainda bem que meu pai contratou essas três enfermeiras, porque senão Diogo não estaria aqui. Ele teve uma parada cardiorrespiratória ainda na maternidade. Pequeno e frágil como era (só 1,7 kg), Diogo não sobreviveria.
Também devido às complicações da pré-eclâmpsia, o médico sugeriu que, mais tarde, minha mãe fizesse uma ligadura das trompas. Outra gravidez dessa poderia matá-la. Mas ela não fez. Com que dinheiro?
Ainda assim, com meu pai quase indo à bancarrota e com o médico sugerindo técnicas de esterilização, nova gravidez. Uma irresponsabilidade tamanha! Depois de tudo o que passaram, conscientes do risco... Mas quem sou eu pra falar alguma coisa, não é mesmo? Não só por serem meus pais, mas também porque quem nasceu dessa gravidez fui eu. Por conta disso, eu suspeitava, desde que eu soube das truths of the life, de que a última gravidez da minha mãe foi... indesejada, digamos.
E eu acho uma situação um tanto estranha, porque eu nunca vi minha mãe contar história alguma dessa época. A única coisa que sei é que eu fui o que nasceu "maior" dentre nós quatro (mais de 4 kg, uma das origens da minha obesidade na infância e adolescência).
Aliás, eu sei de outra coisa, sim. Uma vez, nas férias do meu primeiro ano aqui em São Carlos, Ademir*, o engenheiro que cuida da manutenção das máquinas da loja do meu pai o convidou pra almoçar num restaurante pequeno, anexo a um hotel fazenda bem simples, perto de um centro espírita conhecido lá da região de Uberaba. Fomos meus pais e eu.
Um casal conhecido do Ademir estava lá também. Tinham dois filhos; um dos quais ainda era bebê.
- Nossa, quatro filhos! E você é tão jovem... Mal dou conta dos meus dois! - tagarelou a mulher, com a curiosidade de mãe inexperiente. E ficou perguntando aleatoriedades sobre essa época.
- Mas diga lá, foram todas... planejadas?
Parada dramática. Meus pais se entreolham. Eu engulo em seco, apesar do prato à minha frente e da fome de um almoço atrasado de domingo.
- É... - diz minha mãe, totalmente sem-graça - o último foi "escapulido".


- Vou dar uma andada - eu disse, logo que terminei de almoçar.
O hotel fazenda tinha um pomar. Vagando entre as mangueiras de mangas fora de época, ou perto da piscina com aquela molecada, que logo pegariam um resfriado por causa do vento que traria chuva logo mais... parei pra pensar.
Que situação embaraçosa foi para a minha mãe! Afinal, o fruto da última gravidez dela estava ali ao lado, um quase homem feito de um metro e oitenta e três.
Adianta eu me desapontar com o fato de eu saber que, a princípio, meus pais não queriam ter outro filho depois dos gêmeos? É óbvio que eles não queriam! Eles quase faliram por causa da quantidade de filhos que tiveram!

Voltando àquela história da sociedade: logo que meu pai brigou com meu tio, ele ficou muito tempo "desempregado" (sem nenhuma fonte de renda, entenda-se; afinal, se ele era sócio, ele não tinha um emprego de carteira assinada fazia tempo). Nós quatro estudávamos em escola particular. Eu estava na segunda série.
Coisa que eu soube anos depois foi que meus pais explicaram a situação financeira dificílima por que eles estavam passando à direção da escola, que negociou manter dois de nós (Paulo e eu) no colégio, mesmo sem pagar as mensalidades, sendo que seriam pagas quando a situação lá em casa melhorasse. Diogo e Gabriel passaram a estudar em escola estadual, o que durou dois anos. Acho que a direção aceitou essa negociação porque nós mantínhamos notas bem altas, enquanto que Diogo e Gabriel, nem tanto. De qualquer forma, foram dois anos de pindaíba forte.
Várias vezes vi minha mãe chorando na sala àquela época. Ela nunca me explicou o motivo, mas hoje eu entendo: "sacrificar" a educação escolar dos gêmeos por falta de recursos certamente não era algo fácil de suportar.
Como é que eles explicariam tudo isso a uma criança de seis, sete anos? Não que tenha havido uma conversa séria, em que tudo isso foi explicado mais tarde - eu só fui juntando as peças ao longo dos anos.

Não adianta: agora, Inês é morta. Ou melhor, eu sou vivo, e existo. Um filho de uma gravidez indesejada. Imagino que se deve ter um espírito tão... elevado, um grau de maturidade tão grande pra se aceitar essa vida intrusa, não planejada, indesejada, e ainda amá-la como um filho deveria ser amado, movendo mundos pra garantir alguma dignidade, um mínimo de conforto, um futuro a ele, que...

Realmente, nós nunca vamos ser suficientemente gratos a nossos pais. Eu, pelo menos.

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